A Qualidade da Liberdade

Como já é um lugar comum, somos demasiado livres: posso perfeitamente pegar numa arma e ir para a rua disparar. Posso. É um facto. Será uma violência sobre a liberdade dos outros, mas até me pegarem nos braços e impedirem-me de continuar (ou me derem um tiro), é algo que qualquer um de nós consegue fazer.

Esta liberdade terrível inclui a liberdade de nos sujeitarmos a violências contra as quais podíamos muito bem lutar. Inclui a liberdade de não usar a liberdade. Inclui a liberdade de sermos irresponsáveis ou responsáveis.

Limitações à liberdade

Essa liberdade absoluta só é limitada por dois factores: a violência dos outros e as nossas próprias limitações. Se pensarmos bem, estas duas limitações, na realidade, são só uma: os limites das nossas capacidades (de nos defendermos, de sermos criativos com a liberdade, de concretizar os nossos desejos).

Ora, a função principal da sociedade enquanto tal é dar-nos a oportunidade de sermos ou não criativos com a nossa liberdade (ou seja, estar sossegada) e impedir a violência duns contra os outros (agarrar-me nos braços ou dar-me um tiro, no caso apresentado acima). Ou seja, maximizar a nossa liberdade, livre de violência.

A Qualidade da Liberdade

Agora, significa isto que aquilo que fazemos com a nossa liberdade é igual, seja o que for que façamos? Claro que não: a liberdade pode ser utilizada de forma melhor ou pior. Posso ter demasiados vícios, posso deixar-me influenciar por tudo o que me dizem, posso ficar fechado em casa, posso não querer saber nada, posso funcionar como uma peça numa máquina cega, posso acreditar em ideologias que limitam o mundo a um conjunto restrito de regras e explicações. Posso fazer isto tudo. Para mim, pessoalmente, isto significa um fraca qualidade da liberdade.

Ou seja, a liberdade é absoluta, mas pode ter mais ou menos qualidade, pode ser utilizada de formas distintas, com diferentes valores (nem tudo é igual). Podemos avaliar a liberdade dos outros, tentar influenciá-los a utilizá-la da forma que achamos mais indicada para eles (ou para nós). Somos livres de o fazer. Devemos fazê-lo, em certos casos. Podemos sempre não o fazer. (A ética, que existe e não é relativa, não limita em nada a nossa liberdade, a não ser que o queiramos - e eu, por mim, quero.)

No final, só cada um de nós pode avaliar de forma activa a qualidade da sua própria liberdade. Só cada indivíduo pode realmente julgar a forma como é livre e pode alterá-la. Só cada indivíduo sabe se quer ser (ou se sabe ser) responsável ou irresponsável, curioso ou castrado, influenciável ou bicho do mato.

Por mim, a liberdade deve ser sempre irreverente, curiosa, salgada, consciente do que existe e do que é bom, dos outros, das relações com os outros, das liberdades dos outros; deve ser uma liberdade aberta a tudo o que existe, a esse mundo que não pedimos mas que ainda assim nos
apareceu à frente. Em relação aos outros, sei o que penso do que fazem com a liberdade deles, mas não posso e não devo tentar violentar a liberdade deles, primeiro, porque são livres, segundo porque não há ninguém que me consiga provar sem sombra de dúvidas que a minha liberdade é melhor do que a deles (mas mesmo que fosse...).

Em relação às violências exercidas sobre a nossa liberdade, cada um decide o que fazer: sujeitar-se ou lutar, ignorar ou conhecer, ironizar ou servir de papagaio. No caso das liberdades que desejamos mas que estão para lá do nosso alcance, só nos resta escolher, livremente: lutar por mudar e alcançar ou conformarmo-nos. Por vezes, a melhor liberdade implica conformarmo-nos com alguns dos sonhos impossíveis, para podermos desfrutar da liberdade que temos e podemos utilizar. Mas tudo depende de cada um. Aí está o que é terrível, difícil, solitário na vida humana. Precisamente, humana.

1 comentário:

Anónimo disse...

Pois é, Andre. Liberdade há-a para todos os gostos. No fim, o que conta depois de uma vida passada?
Creio que a suprema dignidade da liberdade está em tê-la exercido sob a forma de assinatura no mundo, uma assinatura válida pelo esforço em torná-lo melhor.
É comum dizer-se o que considero o pior cliché de todos: "a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros". Eu acho precisamente o contrário. Creio formemente que a nossa liberdade começa quando deixamos os outros serem livres. Sem choques.
Mas, claro, isto não é conversa para um post e uma caixa de comentários apenas.
Abraço.